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Mostrando postagens com marcador Crônicas narrativas. Mostrar todas as postagens
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1.10.16

O Vergalho

Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por
aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar
a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se
atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: – "Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!" Mas
o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.
– Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
– Meu senhor! gemia o outro.
– Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque
Prudêncio – o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção;
perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
– E, sim, nhonhô.
– Fez-te alguma coisa?
– É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá
embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
– Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
– Pois não, nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!
Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a cavar cá
dentro uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom
capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio
do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato,
fino e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, –
transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem
compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas,
podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um
escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS - CAPÍTULO 68

Machado de Assis


Diálogo pós-morte

- Alô ?
- Sim.
- Maria ?
- É ela mesma, quem fala ?
- É o José...
- Ah, sim, tudo bem ? Que que aconteceu ? Tá com a voz estranha...
- Eu estou bem sim, mas...não sei como te falar isso...
- Ora, fale logo! Está me deixando preocupada !
- O Joaquim...teu irmão...faleceu essa madrugada...
- Ah meu Deus...
- Ele morreu dormindo, não sentiu nada. Não se preocupe
- ...
- De manhã quando acordamos, não vimos ele lendo o jornal. Estranhamos e fomos ao quarto ver o que havia acontecido. Ele estava deitado, meio encolhido. Parecia mais calmo que nunca.
- Meu Deus...Não nos falávamos há anos ! Vocês já sabem como ou porquê aconteceu ?
- Disseram que o coração parou. Só isso.
- Meu Deus...
- Ele viveu bem. Não passou sequer uma semana doente. Não sofreu. Morreu dormindo. Eu mataria para morrer dormindo e sem sofrer como ele...
- Sim, ao menos isso...morreu dum jeito bom, se é que isso existe.
- O velório será naquele cemitério que o vô de vocês tá enterrado. Nunca lembro o nome daquele lugar.
- Ah, sei onde é.
- Vai ser amanhã às nove da noite.
- Às nove da noite ?
- Sim...
- Não tem como ser mais cedo ?
- Não, aparentemente muita gente morreu e os horários estão reservados.
- Até quando você morre tem que ficar na fila ! Esse mundo...
- É...
- Mas olhe, aquela lanchonete de lá fica aberta até essas horas ?
- Acho que sim.
- Que bom, não agüento essas coisas sem tomar um cafézinho. Sabe como é...
- Sei sim. Então você vai ?
- Acho que sim, tenho que ver se arranjo alguém pra gravar a novela para mim, senão não sei como farei...
- Ah, entendo...
- Até amanhã, filho. Você serviu meu irmão muito bem todos esses anos. Deixou de ser caseiro e virou um irmão. Obrigado.
- Magina, não fiz mais que minha obrigação. Até amanhã

(Desligam os telefones)

- Maldita velha hipócrita...


Inimigos


“O apelido de Maria Tereza, para Norberto, era ‘Quequinha’. Depois do casamento, sempre que queria contar para os outros uma de sua mulher, o Norberto pegava na sua mão, carinhosamente, e começava:
- Pois a Quequinha...
E a Quequinha, dengosa, protestava:
 -Ora, Beto!
Com o passar do tempo o Norberto deixou de chamar a Maria Tereza de Quequinha. Se ela estivesse ao seu lado e ele quisesse se referir a ela, dizia:
-A mulher aqui...
Ou, ás vezes:
-Esta mulherzinha...
Mas nunca mais Quequinha. (O tempo, o tempo. O amor tem mil inimigos, mas o pior deles é o tempo. O tempo ataca o silêncio. O tempo usa armas químicas.) Com o tempo, Norberto passou a tratar a mulher por Ela.
-Ela odeia o Charles Brason.
-Ah, não gosto mesmo.
Deve-se dizer que o Norberto, a esta altura, embora a chama-se de Ela, ainda usava um vago gesto de mão para indicá-la. Pior foi quando passou a dizer ‘essa ai’ e a apontava com o queixo.
- Essa ai...
E apontava com o queixo, até curvando a boca com um certo desdém. (O tempo, o tempo. Tempo captura o amor e não o mata na hora. Vai tirando uma asa, depois cura) Hoje, quando quer contar alguma coisa da mulher, O Norberto nem olha na direção. Faz um meneio de lado com a cabeça e diz:
- Aquilo...”


VERÍSSIMO, Luis Fernando. Novas comédias da vida privada. Porto Alegre: L&PM, 1996.

O Melhor Amigo – crônica de Fernando Sabino


A mãe estava na sala, costurando. O menino abriu a porta da rua, meio ressabiado, arriscou um passo para dentro e mediu cautelosamente a distância. Como a mãe não se voltasse para vê-lo, deu uma corridinha em direção de seu quarto.
– Meu filho? – gritou ela.
– O que é – respondeu, com o ar mais natural que lhe foi possível.
– Que é que você está carregando aí?
Como podia ter visto alguma coisa, se nem levantara a cabeça? Sentindo-se perdido,tentou ainda ganhar tempo.
– Eu? Nada…
– Está sim. Você entrou carregando uma coisa.
Pronto: estava descoberto. Não adiantava negar – o jeito era procurar comovê-la.Veio caminhando desconsolado até a sala, mostrou à mãe o que estava carregando:
– Olha aí, mamãe: é um filhote…
Seus olhos súplices aguardavam a decisão.
– Um filhote? Onde é que você arranjou isso?
– Achei na rua. Tão bonitinho, não é, mamãe?
Sabia que não adiantava: ela já chamava o filhote de isso. Insistiu ainda:
– Deve estar com fome, olha só a carinha que ele faz.
– Trate de levar embora esse cachorro agora mesmo!
– Ah, mamãe… – já compondo uma cara de choro.
– Tem dez minutos para botar esse bicho na rua. Já disse que não quero animais aqui em casa. Tanta coisa para cuidar, Deus me livre de ainda inventar uma amolação dessas.
O menino tentou enxugar uma lágrima, não havia lágrima. Voltou para o quarto, emburrado:
A gente também não tem nenhum direito nesta casa – pensava. Um dia ainda faço um estrago louco. Meu único amigo, enxotado desta maneira!
– Que diabo também, nesta casa tudo é proibido! – gritou, lá do quarto, e ficou
esperando a reação da mãe.
– Dez minutos – repetiu ela, com firmeza.
– Todo mundo tem cachorro, só eu que não tenho.
– Você não é todo mundo.
– Também, de hoje em diante eu não estudo mais, não vou mais ao colégio, não
faço mais nada.
– Veremos – limitou-se a mãe, de novo distraída com a sua costura.
– A senhora é ruim mesmo, não tem coração!
– Sua alma, sua palma.
Conhecia bem a mãe, sabia que não haveria apelo: tinha dez minutos para brincar com seu novo amigo, e depois… ao fim de dez minutos, a voz da mãe, inexorável:
– Vamos, chega! Leva esse cachorro embora.
– Ah, mamãe, deixa! – choramingou ainda: – Meu melhor amigo, não tenho mais
ninguém nesta vida.
– E eu? Que bobagem é essa, você não tem sua mãe?
– Mãe e cachorro não é a mesma coisa.
– Deixa de conversa: obedece sua mãe.
Ele saiu, e seus olhos prometiam vingança. A mãe chegou a se preocupar: meninos nessa idade, uma injustiça praticada e eles perdem a cabeça, um recalque, complexos, essa coisa.
– Pronto, mamãe!
E exibia-lhe uma nota de vinte e uma de dez: havia vendido seu melhor amigo por trinta dinheiros.
– Eu devia ter pedido cinqüenta, tenho certeza que ele dava murmurou, pensativo.


30.9.16

Minhas férias - Luis Fernando Veríssimo

Minhas férias - Luis Fernando Veríssimo

Eu, minha mãe, meu pai, minha irmã (Su) e meu cachorro (Dogman) fomos fazer camping. Meu pai decidiu fazer camping este ano porque disse que estava na hora de a gente conhecer a natureza de perto, já que eu, a minha irmã (Su) e o meu cachorro (Dogman) nascemos em apartamento, e, até os 5 anos de idade, sempre que via um passarinho numa árvore, eu gritava "aquele fugiu!" e corria para avisar um guarda; mas eu acho que meu pai decidiu fazer camping depois que viu o preço dos hotéis, apesar de a minha mãe avisar que, na primeira vez que aparecesse uma cobra, ela voltaria para casa correndo, e a minha irmã (Su) insistir em levar o toca- discos e toda a coleção de discos dela, mesmo o meu pai dizendo que aonde nós íamos não teria corrente elétrica, o que deixou minha irmã (Su) muito irritada, porque, se não tinha corrente elétrica, como ela ia usar o secador de cabelo? Mas eu e o meu cachorro (Dogman) gostamos porque o meu pai disse que nós íamos pescar, e cozinhar nós mesmos o peixe pescado no fogo, e comer o peixe com as mãos, e se há uma coisa que eu gosto é confusão. Foi muito engraçado o dia em que minha mãe abriu a porta do carro bem devagar, espiando embaixo do banco com cuidado e perguntando "será que não tem cobra?", e o meu pai perdeu a paciência e disse "entra no carro e vamos embora", porque nós ainda nem tínhamos saído da garagem do edifício. Na estrada tinha tanto buraco que o carro quase quebrou, e nós atrasamos, e quando chegamos ao local do camping já era noite, e o meu pai disse "este parece ser um bom lugar, com bastante grama e perto da água", e decidimos deixar para armar a barraca no dia seguinte e dormir dentro do carro mesmo; só que não conseguimos dormir porque o meu cachorro (Dogman) passou a noite inteira querendo sair do carro, mas a minha mãe não deixava abrirem a porta, com medo de cobra; e no dia seguinte tinha a cara feia de um homem nos espiando pela janela, porque nós tínhamos estacionado o carro no quintal da casa dele, e a água que o meu pai viu era a piscina dele e tivemos que sair correndo. No fim conseguimos um bom lugar para armar a barraca, perto de um rio. Levamos dois dias para armar a barraca, porque a minha mãe tinha usado o manual de instruções para limpar umas porcarias que o meu cachorro (Dogman) fez dentro do carro, mas ficou bem legal, mesmo que o zíper da porta não funcionasse e para entrar ou sair da barraca a gente tivesse que desmanchar tudo e depois armar de novo. O rio tinha um cheiro ruim, e o primeiro peixe que nós pescamos já saiu da água cozinhado, mas não deu para comer, e o melhor de tudo é que choveu muito, e a água do rio subiu, e nós voltamos pra casa flutuando, o que foi muito melhor que voltar pela estrada esburacada; quer dizer que no fim tudo deu certo.